quinta-feira, março 29, 2012

Eu pensei que fosse briga quando vi as pessoas se empurrando e fugindo da pista de dança, mas não fui capaz de me mover até entender o que estava acontecendo. Já basta ter que fugir de fantasmas diariamente, dessa vez eu precisava ver para saber do que tinha que correr.
Foi só quando a multidão dispersou que deu pra ver que o chão estava cedendo. Me senti dentro de um daqueles desenhos animados, tipo A Era do Gelo, sabem? O chão começou a trincar e as rachaduras vieram na minha direção, quando se aproximaram dos meus pés tive a ligeira impressão de que uma fenda se abriria bem debaixo deles e eu seria engolida, o que, convenhamos, não deixaria de ser uma forma pateticamente poética de uma pecadora morrer.
De uns dias para cá coisas vem desabando ao meu redor: no meio da semana, prédios desmoronaram no centro da cidade quando eu estava trabalhando pelos arredores, ontem o chão onde eu estava pisando cedeu e hoje uma árvore enorme caiu na rua da minha casa. Isso sem falar nos meus cabelos e seios, embora estes estejam caindo num processo gradativo.
Já mandaram eu ir me benzer, fazer oração, mandinga ou, quem sabe, tentar uma nova dieta. Mas eu não me sinto azarada, acima do peso talvez, azarada não. Espero que muitas coisas não precisem continuar caindo para que eu me convença de que não estou com sorte. Por enquanto só estou convencida de que a minha tropa de anjos da guarda é de elite e anda merecendo uns dias de folga.
Lá na festa, durante o incidente, eu fui tomada por uma estranha serenidade. Quis sair correndo do local, sim, como todo mundo. Mas sabia que não adiantaria. A escada que levava até a saída era estreita e as pessoas, no desespero, se empurravam instintivamente para sair primeiro. Eu me preocupei em acalmar minha amiga que estava comigo e enquanto tentava tira-la de lá, me vi olhando para aquilo tudo como se estivesse no alto, suspensa. Tanto que me lembro da cena assim, vista de cima.
Talvez eu tenha ficado calma porque eu esteja mais acostumada com rachaduras do que eu gostaria ou porque nada me impressione mais do que as coisas que estou acostumada a ver partindo ou quebrando todos os dias. Talvez seja só essa tendência de assistir em vez de participar, mania de contador de histórias, que vira narrador de terceira pessoa mesmo quando está na primeira.
De alguma forma eu sabia que daria tudo certo. Talvez seja isso o que chamam de intuição. Só sei que, diante daquela atmosfera de pânico, me mantive distante e fui suficientemente cretina a ponto de ver poesia naquilo tudo, longe daquela linha poética de narrativa arrastada que a gente sempre tende a repetir em momentos como esse: “poderia ser pior; tenho que agradecer por estar viva; eu poderia ter morrido, etc…”. Ora, eu poderia ter morrido tantas vezes que já perdi as contas. A gente morre um pouco a cada minuto, a diferença entre esses minutos de morte e esses outros como o de ontem é que normalmente a gente não nota.
Olhei para aquele chão e – não me julguem! – tudo que eu consegui enxergar foi um enorme coração: terra que ninguém deveria pisar, mas sempre tem um aqui e outro ali pisando de levinho, testando as estruturas. Mal sentimos as pisadas, até que começam a dançar e pular em cima dele porque, até então, ele prova que resiste, mas aí ele racha. E todo mundo sai correndo.
Foi só (mais) uma rachadura. O coração não partiu dessa vez, a casa não caiu, mas as brechas incomodam mais do que os buracos. É pelas brechas que entram os insetos menores, mas não menos nocivos. Pelas frechas entra a luz que mostra as pequenas imperfeições do piso, os defeitos que ninguém quer ver porque é melhor andar sobre uma superfície bonita e lisa porém oca, do que explorar um terreno irregular, ainda que fértil.
Por outro lado é bom que o chão ceda vez ou outra e que as rachaduras apareçam eventualmente, assim, só pisa nele quem já aprendeu a andar no escuro, quem já cambaleou o bastante para entender que chão nenhum é seguro e que coração não é terra firme.
Se a gente quiser pisar firme mesmo, precisa aprender a andar em nuvem.
Roberta Simoni

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