Eu pensei que fosse briga quando vi as
pessoas se empurrando e fugindo da pista de dança, mas não fui capaz de
me mover até entender o que estava acontecendo. Já basta ter que fugir
de fantasmas diariamente, dessa vez eu precisava ver para saber do que
tinha que correr.
Foi só quando a multidão dispersou que
deu pra ver que o chão estava cedendo. Me senti dentro de um daqueles
desenhos animados, tipo A Era do Gelo, sabem? O chão
começou a trincar e as rachaduras vieram na minha direção, quando se
aproximaram dos meus pés tive a ligeira impressão de que uma fenda se
abriria bem debaixo deles e eu seria engolida, o que, convenhamos, não
deixaria de ser uma forma pateticamente poética de uma pecadora morrer.
De uns dias para cá coisas vem desabando
ao meu redor: no meio da semana, prédios desmoronaram no centro da
cidade quando eu estava trabalhando pelos arredores, ontem o chão onde
eu estava pisando cedeu e hoje uma árvore enorme caiu na rua da minha
casa. Isso sem falar nos meus cabelos e seios, embora estes estejam
caindo num processo gradativo.
Já mandaram eu ir me benzer, fazer
oração, mandinga ou, quem sabe, tentar uma nova dieta. Mas eu não me
sinto azarada, acima do peso talvez, azarada não. Espero que muitas
coisas não precisem continuar caindo para que eu me convença de que não
estou com sorte. Por enquanto só estou convencida de que a minha tropa
de anjos da guarda é de elite e anda merecendo uns dias de folga.
Lá na festa, durante o incidente, eu fui
tomada por uma estranha serenidade. Quis sair correndo do local, sim,
como todo mundo. Mas sabia que não adiantaria. A escada que levava até a
saída era estreita e as pessoas, no desespero, se empurravam
instintivamente para sair primeiro. Eu me preocupei em acalmar minha
amiga que estava comigo e enquanto tentava tira-la de lá, me vi olhando
para aquilo tudo como se estivesse no alto, suspensa. Tanto que me
lembro da cena assim, vista de cima.
Talvez eu tenha ficado calma porque eu
esteja mais acostumada com rachaduras do que eu gostaria ou porque nada
me impressione mais do que as coisas que estou acostumada a ver partindo
ou quebrando todos os dias. Talvez seja só essa tendência de assistir
em vez de participar, mania de contador de histórias, que vira narrador
de terceira pessoa mesmo quando está na primeira.
De alguma forma eu sabia que daria tudo
certo. Talvez seja isso o que chamam de intuição. Só sei que, diante
daquela atmosfera de pânico, me mantive distante e fui suficientemente
cretina a ponto de ver poesia naquilo tudo, longe daquela linha poética
de narrativa arrastada que a gente sempre tende a repetir em momentos
como esse: “poderia ser pior; tenho que agradecer por estar viva; eu poderia ter morrido, etc…”.
Ora, eu poderia ter morrido tantas vezes que já perdi as contas. A
gente morre um pouco a cada minuto, a diferença entre esses minutos de
morte e esses outros como o de ontem é que normalmente a gente não nota.
Olhei para aquele chão e – não me julguem!
– tudo que eu consegui enxergar foi um enorme coração: terra que
ninguém deveria pisar, mas sempre tem um aqui e outro ali pisando de
levinho, testando as estruturas. Mal sentimos as pisadas, até que
começam a dançar e pular em cima dele porque, até então, ele prova que
resiste, mas aí ele racha. E todo mundo sai correndo.
Foi só (mais) uma rachadura. O coração
não partiu dessa vez, a casa não caiu, mas as brechas incomodam mais do
que os buracos. É pelas brechas que entram os insetos menores, mas não
menos nocivos. Pelas frechas entra a luz que mostra as pequenas
imperfeições do piso, os defeitos que ninguém quer ver porque é melhor
andar sobre uma superfície bonita e lisa porém oca, do que explorar um
terreno irregular, ainda que fértil.
Por outro lado é bom que o chão ceda vez
ou outra e que as rachaduras apareçam eventualmente, assim, só pisa
nele quem já aprendeu a andar no escuro, quem já cambaleou o bastante
para entender que chão nenhum é seguro e que coração não é terra firme.
Se a gente quiser pisar firme mesmo, precisa aprender a andar em nuvem.
Roberta Simoni
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