“Eu olho pra sua tatuagem e pro tamanho do seu braço
e pros calos da sua mão e acho que vai dar tudo certo. Me encho de
esperança e nada. Vem você e me trata tão bem. Estraga tudo.
Mania de ser bom moço, coisa chata.
Eu nunca mais quero ouvir que você só tem olhos pra mim, ok? E nem o
quanto você é bom filho. Muito menos o quanto você ama crianças. E trate
de parar com essa mania horrível de largar seus amigos quando eu ligo.
Colabora, pô. Tá tão fácil me ganhar, basta fazer tudo pra me perder.
E lá vem ele dizer que meu cabelo sujo tem cheiro bom. E que já que eu
não liguei e não atendi, ele foi dormir. E que segurar minha mão já
basta. E que ele quer conhecer minha mãe. E que viajar sem mim é um
final de semana nulo. E que tudo bem se eu só quiser ficar lendo e não
abrir a boca.
Com tanto potencial pra acabar com a minha vida, sabe o que ele quer? Me
fazer feliz. Olha que desgraça. O moço quer me fazer feliz. E acabar
com a maravilhosa sensação de ser miserável. E tirar de mim a única
coisa que sei fazer direito nessa vida que é sofrer. Anos de
aprimoramento e ele quer mudar todo o esquema. O moço quer me fazer
feliz. Veja se pode.
E aí passa a maior gostosa na rua e ele lá, idolatrando meu nariz. E aí o
celular dele toca e ele, putz, perdeu a ligação porque demorou trinta
mil horas pra desvencilhar os dedos do meu cabelo. Com tanto potencial
pra me dar uns tapas, o moço adora me fazer carinho com a ponta dos
dedos.
Não dá, assim não dá. Deveria ter cadeia pra esse tipo de elemento
daninho. Pior é que vicia. Não é que acordei me achando hoje? Agora
neguinho me trata mal e eu não deixo. Agora neguinho quer me judiar e eu
mando pastar. Dei de achar que mereço ser amada. Veja se pode. Trinta
anos servindo de capacho, feliz da vida, e aí chega um desavisado com a
coxa mais incrível do país e muda tudo. Até assoviando eu tô agora. Que
desgraça.
Ontem quase, quase, quase ele me tratou mal. Foi por muito pouco. Eu
senti que a coisa tava vindo. Cruzei os dedos. Cheguei a implorar ao
acaso. Vai, meu filho. Só um pouquinho. Me xinga, vai. Me dá uma
apertada mais forte no braço. Fala de outra mulher. Atende algum amigo
retardado bem na hora que eu tava falando dos meus medos. Manda eu calar
a boca. Sei lá. Faz alguma coisa homem!
E era piada. Era piadinha. Ele fez que tava bravo. E acabou. Já veio com
o papo chato de que me ama e começou a melação de novo. Eita homem pra
me beijar. Coisa chata.
Minha mãe deveria me prender em casa, me proteger, sei lá. Onde já se
viu andar com um homem desses. O homem me busca todas as vezes, me
espera na porta, abre a porta do carro. Isso quando não me suspende no
ar e fala 456 elogios em menos de cinco segundos. Pra piorar, ele ainda
tem o pior dos defeitos da humanidade: ele esqueceu a ex namorada.
Depois de trinta anos me relacionando só com homens obcecados por amores
antigos, agora me aparece um obcecado por mim que nem lembra direito o
nome da ex. Fala se tão de sacanagem comigo ou não? Como é que eu vou
sofrer numa situação dessas? Como? Me diz?
Durmo que é uma maravilha. A pele está incrível. A fome voltou. A vida
tá de uma chatice ímpar. Alguém pode, por favor, me ajudar? Existe
terapia pra tentar ser infeliz? Outro dia até me belisquei pra sofrer um
pouquinho. Mas o desgraçado correu pra assoprar e dar beijinho.”
Era mais um dia normal, ela acordo, tomo seu café, e ficou sem fazer nada, como sempre. Dia frio, sereno na janela do seu quarto bagunçado. Era bom, se essa bagunça fosse só no quarto dela. Mais não, a bagunça também estava na vida dela, no coração daquela pequena. Pequena, mais porém, com um coração enorme, e partido. Depois de tantos quebrar o coração dela, era possível o coração ainda ter espaço para amar? Ela ainda tinha motivos para sorrir? Talvez sim, talvez não, nunca se sabe né.
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